Condenação de Bolsonaro muda o tabuleiro: sem votos para anistia ampla
A condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro a mais de 27 anos pelo Supremo Tribunal Federal deslocou o centro de gravidade da política em Brasília. A pressão por anistia geral para envolvidos nos atos de 8 de janeiro voltou ao topo da pauta, mas, nos bastidores, o recado é direto: falta voto. O presidente da Câmara, Hugo Motta, tem dito a aliados que uma anistia ampla não passa — e, mais que isso, esbarraria na Constituição.
O argumento jurídico ganhou força depois de alertas de ministros do STF: não cabe anistiar crimes contra o Estado Democrático de Direito, porque eles tocam cláusulas que não podem ser alteradas, como a forma federativa, a separação de Poderes e o voto. Na prática, mesmo que houvesse maioria no plenário da Câmara, o texto seria alvo de questionamentos no próprio Supremo no dia seguinte.
Motta não fechou a porta para um debate mais restrito. A urgência do projeto foi aprovada, o que permite levar o tema direto ao plenário, sem passar por comissões. Mas ele escalou um relator de perfil moderado, o deputado Paulinho da Força (Solidariedade), que já adiantou não ver espaço para perdão total. A solução, diz ele, tende a ser intermediária: nada de carta em branco, e sim redução de penas calibrada conforme a gravidade da conduta.
Do lado do governo, o sinal é de pragmatismo. Em conversas com aliados do PDT, o presidente Lula indicou não se opor a uma modulação de penas — lembrando sua própria passagem de 580 dias pela prisão. No Planalto, a leitura é que um projeto focado em sentenças pode encerrar a temperatura política sobre anistia, dar algum alívio humanitário a réus de menor periculosidade e evitar confronto direto com o STF.
Por que a pressa? A base bolsonarista tenta transformar o tema em bandeira após a condenação de Bolsonaro. A narrativa é simples: pacificação nacional. Mas, no plenário, pesou a avaliação de que uma anistia ampla seria lida como estímulo à impunidade e abriria crise com o Supremo. Nesse xadrez, líderes do centro repetem: sem risco jurídico, até dá para conversar; com risco, não há como blindar a Casa.

O que está em jogo e como pode ficar o texto
Os atos de 8 de janeiro deixaram um rastro de processos no STF. Há réus já condenados e outros aguardando julgamento, em diferentes níveis de participação — de quem financiou viagens e logística a quem quebrou patrimônio público e invadiu prédios. Esse mosaico explica por que a Câmara fala em calibrar punição, não zerar o jogo.
Nos rascunhos que circulam entre líderes, estão sobre a mesa alguns pontos de partida:
- Diferenciar perfis: quem não praticou violência, não destruiu patrimônio e não participou de organização pode ter tratamento mais brando que autores de depredação ou liderança de atos.
- Redução de pena: faixas graduais conforme o nível de envolvimento, com prioridade para penas alternativas e prestação de serviços à comunidade onde houver margem legal.
- Filtros de exclusão: crimes com violência, dano qualificado, associação criminosa e financiamento podem ficar fora de qualquer benefício.
- Regras claras para réus já condenados e para processos em curso, evitando dupla interpretação e efeito cascata em outros casos penais.
Esses eixos não são consenso, mas dão a medida do “meio-termo” citado por Paulinho da Força: um texto que não agrade a extrema direita, por não perdoar tudo, nem a esquerda, por suavizar penas, e que ainda assim atraia a maioria silenciosa do plenário.
O itinerário político também conta. Com a urgência aprovada, o relator precisa apresentar um parecer que resista a emendas de plenário e a obstruções. O Colégio de Líderes vai pesar a mão, porque o tema mexe com as bases eleitorais dos partidos. Para o centrão, interessa encerrar logo o assunto e livrar a pauta de ruídos; para a oposição bolsonarista, interessa manter o calor e tentar ampliar o alcance do benefício; para a esquerda, a palavra de ordem é não aceitar qualquer gesto que fragilize a resposta institucional aos ataques às sedes dos Três Poderes.
E se a Câmara aprovar algo mais amplo? A tendência é judicialização imediata. Partidos e a Procuradoria podem acionar o STF com ações diretas de inconstitucionalidade, usando como âncora o entendimento de que o Congresso não pode anistiar condutas que atentam contra cláusulas pétreas e o regime democrático. O risco de ver a lei suspensa liminarmente é alto, e isso tem pesado no cálculo de líderes.
Há ainda o fator agenda. Enquanto a discussão sobre anistia consome energia, projetos com impacto direto no bolso estão congelados. A promessa de isenção de IR para quem ganha até R$ 5 mil, por exemplo, segue em compasso de espera. A Fazenda pressiona por previsibilidade nas receitas, governadores pedem atenção a fundos estaduais, e prefeitos cobram pautas federativas. Toda vez que o plenário trava numa disputa política dessa escala, outras negociações perdem fôlego.
No campo jurídico, a advertência de ministros do STF foi específica: leis que pretendam apagar crimes ligados ao ataque ao Estado Democrático colidem com limites constitucionais. A Lei 14.197/2021, que atualizou os crimes contra a democracia, e o próprio texto constitucional formam a base desse entendimento. Mesmo defensores da flexibilização admitem que qualquer benefício precisa ser cirúrgico, com fundamentos objetivos, para não tombar no Supremo.
Como isso conversa com a opinião pública? Pesquisas internas de partidos apontam um país dividido. Há quem defenda punição exemplar, e há quem peça clemência para quem foi arrastado pelos eventos sem ter liderado ou financiado. Esse fosso ajuda a explicar a aposta numa saída intermediária, vendida como “pacífica, porém responsável”.
Hugo Motta tem repetido que não quer transformar o plenário em arena de confronto institucional. Ao delegar a Paulinho da Força a costura do texto, tenta blindar a presidência da Casa e ganhar tempo. A mensagem ao Palácio do Planalto e ao Supremo é a mesma: a Câmara vai discutir, mas não pretende comprar briga com a Constituição.
Para a oposição bolsonarista, a pior saída seria um texto enxuto, limitado a redução de penas sem alcançar quem foi condenado por crimes mais graves. Por isso a ofensiva pública: coletivas, discursos e negociações para ampliar o escopo. Já a base governista trabalha com outra lógica: reduzir danos, fechar o dossiê e devolver o foco à economia.
Ninguém arrisca prazos. O relator quer ouvir bancadas, associações jurídicas e familiares de réus antes de fechar a versão final. A essa altura, porém, está claro o contorno: a Câmara mira uma solução que trate casos de menor gravidade, preserve condenações por violência e liderança, e evite uma colisão frontal com o STF. Se isso será suficiente para acalmar as ruas e desobstruir a pauta, é a pergunta que ainda paira sobre Brasília.